Alexandre Dittrich
Ficaria feliz se você tirasse uns três minutos para ler essa reportagem. Há várias lições importantes nela, e acho que algumas delas falam ao espírito natalino.
Jack Andraka, 16 anos, chamou a atenção por ter criado um diagnóstico inovador para o câncer de pâncreas. Ele deu um pequeno depoimento a jornalistas brasileiros. O rapaz vem sendo constantemente chamado para palestras ao redor do mundo, “quase sempre falando sobre inovação e a importância de se estimular o interesse científico nas escolas”. E faz uma pergunta aos brasileiros: “Encontrei vários estudantes brasileiros nas feiras de que participei. Eles têm bastante apoio por lá?”. Temo que a resposta seja vergonhosa para os brasileiros.
Há dois aspectos na reportagem que não deveriam ter qualquer importância, mas acabam sendo destacados: (1) o rapaz é gay; (2) o rapaz é chamado de “nerd’.
Jack é gay, falou isso para pais e amigos aos 13 anos e quer “servir de exemplo para jovens gays”. E que belo exemplo! Acho que tem havido alguma evolução nisso, mas o preconceito em relação aos gays, trans, etc. ainda é muito forte. Mas o ponto que quero destacar aqui se aplica a todos os tipos de preconceitos: inúmeras pessoas terão suas vidas salvas pela invenção desse menino gay – inclusive homofóbicos.
Um dos grandes paradoxos contemporâneos é o fato de que, quanto mais dependemos uns dos outros, mais somos levados a achar que somos autônomos, independentes, autossuficientes. Mas pode ter certeza: sozinhos nós não somos nada. Isso deveria ser óbvio, mas normalmente fica escondido na névoa da rotina. Dependemos uns dos outros para TUDO nessa vida – do papel higiênico ao mais sólido apoio emocional que possamos ter. Acho que datas religiosas devem ser usadas para lembrar isso – que nós, enquanto indivíduos, não somos nada, e que a solidariedade é tudo. Talvez isso nos ajude a mudar um pouco do que somos quando voltarmos para a correria do cotidiano.
Vamos ao outro ponto: se Jack precisa dizer que não é nerd, é porque já foi chamado de nerd. Esse é outro paradoxo contemporâneo: dependemos hoje do conhecimento mais do que nunca, mas ao mesmo tempo tratamos aqueles que se destacam na produção do conhecimento como nerds, esquisitões, etc. Como sou professor, vejo isso com frequência. É uma inversão de valores incompreensível. Isso pode soar como um clichê, mas a beleza física, os músculos, nádegas e peitos, etc., dos quais a molecada é ensinada a se orgulhar – não por culpa deles, mas porque isso é vendido como uma coisa importante – são obviamente efêmeros. Um “nerd” tem muito mais valor, porque o que ele faz vale para todos, não só pra ele.
Tenho hoje 38 anos, que era a expectativa de vida aproximada no início do século 20. Hoje sou considerado quase um jovem (tomara!) e espero, se tudo der certo, ter um futuro longo, feliz e produtivo pela frente. Isso não é um milagre: é o resultado do trabalho dedicado de muitos outros seres humanos. Em especial, é produto da ciência e de sua aplicação, do esforço dedicado de inúmeras pessoas, de todos os gêneros, raças, credos, etc. A maioria dessas pessoas já não está mais viva, mas elas estarão eternamente presentes pelos frutos do seu trabalho. Elas fizeram alguma diferença, deixaram sua marca, por pequena que seja. Creio que é assim que podemos nos tornar eternos – através do que fazemos pelos outros.
O valor do trabalho é outra lição importante aqui. Talvez Jack seja o que se costuma chamar de “superdotado”, mas mesmo sem conhecer a área posso garantir que a descoberta dele exigiu um nível excepcional de entrega, esforço, dedicação. No mínimo ele teve que aprender sobre todos os mecanismos envolvidos no desenvolvimento do câncer de pâncreas, e sobre todos os métodos de diagnóstico existentes até então. Não é coisa pra turista.
Não sou professor de medicina, mas vou generalizar aqui minha experiência como professor de psicologia: posso garantir que muitos estudantes de medicina acham “um saco” ter que estudar sobre o câncer de pâncreas para aquela prova chata daquele professor mala. Parte disso certamente é um desafio para nós, professores: estudar, para qualquer assunto, não deveria ser algo chato, mas empolgante e desafiador. Mais trabalho nos aguarda…
Não sou religioso, e portanto não uso o Natal – ou qualquer outra data – para adorar esta ou aquela divindade – embora respeite o óbvio direito que todos têm de fazer isso, caso queiram. Mas acho importante celebrar a força do exemplo. Se a vida de Jesus tem exemplos importantes, vamos lembrar e celebrar. Se a vida de Buda tem exemplos importantes, vamos lembrar e celebrar. Se a vida de Mandela tem exemplos importantes, vamos lembrar e celebrar. Se a vida de Jack Andraka tem exemplos importantes, vamos celebrar e dizer a todos: esse rapaz de 16 anos, nerd e gay, tem muito valor, e nós podemos aprender coisas importantes com ele. A distinção entre seres humanos e seres divinos vale muito menos de que a distinção entre bons e maus exemplos.
Estou certo de que todos os humanos considerados “divinos” cometeram erros durante suas vidas. Acho que essa é outra reflexão importante: ninguém é perfeito, e ninguém é um caso perdido. Nós nos definimos pelos nossos atos, e sempre é possível melhorar, nem que seja só um pouco. E a mais admirável maneira de melhorar é fazer da sua própria vida uma tentativa de melhorar a vida dos outros.
Essa é uma jornada coletiva, não individual – e pode ser feita por pessoas com ou sem religião. Ética, trabalho e solidariedade independem de crença.
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Texto reproduzido com autorização do autor, ao qual agradecemos pela gentileza em concedê-lo para publicação no Comportamento & Sociedade.
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