Dizer que não existe leitura neutra chega a ser risível, de tão óbvio. Lemos não só as palavras escritas, mas a vida e o mundo com as cataratas que se constroem em nosso globo ocular existencial no decorrer de nossa trajetória. Algumas das variáveis que influenciam nossa leitura e percepção do mundo nos são conscientes (sabemos descrevê-las). Mas uma imensidão de tantas outras foge à nossa pretensa habilidade de nomeação e descrição. O processo de auto-informação de nossos vieses – isto é, identificar nossas influências – no decorrer de qualquer leitura se caracteriza como ação importante em dois sentidos: 1) Autoconhecimento (repertório comportamental essencial para uma vida, digamos, “menos complicada”)* ; e 2) Análise de nossas próprias tendências na interpretação do texto e consequentes desdobramentos dessa interação em nossa própria formação intelectual. Nossos vieses fazem parte de nós e, em certa medida, participam da conceituação daquilo que somos. Contribuem para o surgimento da diversidade de interpretações e fazem do diálogo com o escritor um lócus de possibilidades incontáveis. Leitura sem viés não é leitura. Disse Marco Antonio Casanova (2008):
“No momento em que nos aproximamos do texto, já nos vemos orientados por uma série de expectativas de sentido e significação que nunca podemos descartar por completo. Mais ainda: se pudéssemos algum dia suspender essas expectativas, tal suspensão não implicaria senão uma inviabilização imediata e completa do movimento mesmo de leitura (p. 63).
A despeito desta relevância imprescindível à construção do conhecimento, há um aspecto bastante particular em um tipo específico de leitura: a leitura indignada, raivosa, ávida por falhas na escrita, no argumento ou na proposta do autor. A própria descrição deste perfil de leitura indigita seus prováveis antecedentes: a indignação diz de uma controvérsia, do ferimento de uma premissa cara para o leitor. Premissa esta que pode até não estar no texto, mas que talvez tenha sido referida previamente por alguém quando mencionando o escrito ou seu autor ou do lugar de onde fala. Infelizmente é assim que o Behaviorismo tem sido lido por muitos. Talvez um dos exemplos clássicos seja o do linguista Noam Chomsky, com suas críticas feitas à proposta teórica de compreensão da linguagem (Chomsky, 1959), elaborada por B. F. Skinner em 1957 (“Verbal Behavior”).
Obstinado a defender uma proposição teórica, Chomsky “leu” o livro de Skinner. Sua leitura é acompanhada claramente por seus vieses. Mas a intensidade de suas influências e a função de sua leitura os direcionaram a uma análise incompreendida, descontextualizada e, logo, desconectada das bases metodológico-epistemológicas que sustentam o modelo teórico de análise funcional do comportamento verbal (MacCorquodale, 1970). A publicação desta crítica propagou-se de tal forma, que “muitos rejeitam Verbal Behavior sem o terem sequer lido, baseados apenas na leitura do texto de Chomsky” (Passos, 2003). Teria sido este o objetivo do crítico de Skinner? Se foi, obteve sucesso. A validade de sua análise, entretanto, é absolutamente questionável (Ardila, 2007; MacCorquodale, 1970; Passos, 2003).
Retomo: Chomsky “leu” Skinner. E ainda hoje muitos leem algumas das obras do velho cientista reproduzindo os métodos de Chomsky. Assedentados, tais leitores esquadrinham o texto skinneriano à procura de possibilidades que oportunizem o levantamento de críticas desqualificadoras. Enquanto fazia crochê, vovó dizia “quem procura, acha!” ao ouvir o neto reclamar por não encontrar no novelo de lã no pequeno armário da sala. E na leitura obstinada pela descoberta de falhas, quem as procura, acha? Depende da função da busca. Há análises críticas cuja função é contribuir para o melhoramento da obra – seja pela ampliação de suas possibilidades, do compartilhamento de ideias. Há outras que, mesmo não visando colaborar com o conjunto de ideias, acabam por trazer contribuições ao tópico em questão. Mas, como nos referimos aqui a um arquétipo particular de leitura (citado no segundo parágrafo), quem procura acha, mas trata-se de um achado distorcido, produzido por seus excessos. Os vieses que outrora enriqueciam a discussão, abriam novos caminhos, e formavam novas pontes, agora convergem-se a um único ponto, feito uma lupa sob o sol ardente que centraliza os raios em um único ponto e queima o que estiver sob sua rota.
Leitura crítica é mais do que essencial, é elementar. Há, no entanto, diversos tipos de crítica. Aquela desqualificadora (principalmente realizada nos espaços de ensino) aparenta ultrapassar as fronteiras do desenvolvimento intelectual mútuo e parece funcionar como dispositivo de exercício do poder. Qualquer leitura que precise se impulsionar por vieses de ódio e retaliação denota ser de procedência e destino eticamente frágeis. A leitura ofensiva também pode funcionar como esquiva, já que se ataca o que se constitui como ameaçador aparente. Seria uma ação mediante o suposto prenúncio da perda de um reforçador importante? Talvez. Vale ainda lembrar a importância de se desassemelhar do comportamento religioso extremista, cujo ataque indignado se dirige a qualquer que ouse apresentar um ponto de vista alternativo.
Tais questões nos direcionam a um desafio custoso: a mudança de postura frente ao que se lê. De um engajamento à conversa aberta, com armas baixadas, ainda que venham projéteis do lado oposto. Não se trata de suspender expectativas, muito menos descartar vieses – algo impossível –, mas de um exercício de autoanálise frente ao texto. É desafiador por isso: por deixar-se frágil diante do que se lê para que, prudentemente, discordâncias surjam, mas sem excessos, abrindo espaços para diálogos e até para eventuais consonâncias. Se aceito e esforçadamente buscado, o processo de engajamento nesta jornada pode produzir frutos de crescimento pessoal e intelectual interessantíssimos para aqueles que interagem (autor e leitor).
Sobre tal proposta ser também direcionada aos behaviouristas? A resposta é igualmente risível, de tão óbvia.
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*Há diversos exemplos de literatura que identificam essa importância. Para citar alguns: Tourinho (1995); Brandenburg & Weber (2005); Skinner (1982).
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Referências
Ardila, R. (2007). Verbal Behavior de BF Skinner: sua importância no estudo do comportamento. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 9(2), 195-197.
Brandenburg, O. J., & Weber, L. N. D. (2005). Autoconhecimento e liberdade no behaviorismo radical. Psico-USF, 10(1), 87-92.
Casanova, M. A. (2008). A compreensão em jogo ou o jogo da compreensão. Em Pauta: Revista Mente, Cérebro & Filosofia, 11, 59-65.
Chomsky, N. (1959). Review of B. F. Skinner’s Verbal behavior. Language, 35, 26-58.
MacCorquodale, K. (1970). On Chomsky’s review of Skinner’s Verbal behavior. Journal of the experimental analysis of behavior, 13(1), 83-99.
Passos, M. D. L. R. D. (2003). A análise funcional do comportamento verbal em Verbal Behavior (1957) de BF Skinner. Revista Brasileira de Terapia Comportamental e Cognitiva, 5(2), 195-213.
Skinner, B. F. (1957/1992). Verbal Behavior. Acton, Massachusetts: Copley.
Skinner, B. F. (1982). Sobre o behaviorismo. São Paulo: Cultrix.
Tourinho, E. Z. (1995). O autoconhecimento na psicologia comportamental de B. F. Skinner. Editora Universitária UFPA.
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Como citar este texto:
APA (6th Edition):
Zortea, T. C. (2014, Dezembro 3). Leitura, indignação e Behaviorismo: Quem procura, acha?. [Web log message] Recuperado de: http://comportamentoesociedade.com.
ABNT:
ZORTEA, T. C. Leitura, indignação e Behaviorismo: Quem procura, acha? Edinburgh, 2014. Disponível em: <http://comportamentoesociedade.com>. Acesso em: dd mmm aaaa.