Por Tiago Zortea
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Não é nova a notícia de que o sono possui extrema importância para a saúde, tal como respirar, se alimentar, beber água. Sabe-se que ele permite a restauração física de todo o corpo, particularmente do cérebro, ajudando a consolidar memórias e processos de informação. Quando dormimos, nosso cérebro não está apenas fortalecendo nossas memórias, mas também as está organizando, selecionando os detalhes emocionais e possibilitando que sejamos criativos [1]. É o sono que nos permite funcionar de maneira efetiva durante o dia. Por esses e diversos outros motivos, é sempre aconselhável ir para a cama mais cedo e ter uma boa noite de sono quando se possui uma entrevista de trabalho no dia seguinte, a prova do ENEM, ou qualquer outra atividade que demande um funcionamento adequado do cérebro e do resto do corpo no dia seguinte. Devido a toda esta importância, não é difícil concluir que os problemas do sono afetam todo o nosso funcionamento – físico, mental e emocional.
Diversos pesquisadores na área de psicologia e neurociências têm se dedicado a investigar como os problemas do sono (insônia, pesadelos, apneia, sonambulismo e outros) afetam o funcionamento comportamental humano. Quando um indivíduo já está passando por alguma dificuldade ou transtorno psicológico, os problemas do sono podem intensificar tais dificuldades emocionais e mentais presentes. Várias evidências indicam que os problemas do sono estão associados ao aumento de sintomas de depressão, ansiedade, stress, e transtorno de stress pós-traumático, por exemplo [2]. Vale, entretanto, ressaltar um ponto importante: problemas do sono não causam tais transtornos. Eles intensificam os sintomas de tais transtornos. E o mesmo ocorre para pessoas que estão pensando seriamente em tirar a própria vida.
Pensamentos (ou “ideações”) suicidas, tentativas de suicídio e morte por suicídio são fenômenos altamente complexos, difíceis de serem entendidos de maneira completa. Muitos fatores estão relacionados ao desenvolvimento de ideações suicidas. Alguns dos principais fatores envolvem sentimentos e percepções de fracasso (quando o indivíduo sente que fracassou na vida), aprisionamento (quando se percebe preso em uma situação ou problema aparentemente sem saída ou solução), sentir-se um peso ou incômodo para outras pessoas, e não ter acesso a suporte social e emocional, por exemplo. O que os cientistas têm recentemente descoberto é que os problemas do sono intensificam o efeito desses fatores, aumentando o risco de suicídio.
A psicóloga e cientista Dra. Donna Littlewood é atualmente a principal referência sobre as relações entre problemas do sono e risco de suicídio. Na Universidade de Manchester (Inglaterra), Dra. Littlewood desenvolveu quatro estudos científicos como parte de sua tese de doutoramento investigando como e porquê os problemas do sono intensificam o risco de suicídio para pessoas que já estejam pensando em tirar suas vidas. Os resultados dos estudos apontam não apenas como os problemas do sono podem intensificar os fatores de risco para o suicídio, mas também indicam as diferentes funções do sono para alguém que sofre tais dificuldades emocionais.
Vários participantes da pesquisa em Manchester afirmaram que dormir era uma alternativa para o suicídio, promovendo um escape, apesar de temporário. Pedro, um dos participantes do estudo, afirmou: “… dormir é como se fosse uma libertação na qual eu permaneço inconsciente por não sei quantas horas e já não fico mais pensando no quão inútil eu sou e na minha vontade de não querer mais existir”. Apesar desta triste afirmação, o sono ainda é o refúgio de muitos, produzindo um alívio temporário dos problemas. No entanto, os pesquisadores afirmam que uma falha na capacidade de dormir (insônia) pode intensificar a sensação de estar aprisionado. Isso acontece quando usar o sono como fuga dos sentimentos e problemas (percebidos como sem solução) é impedido pela insônia [3].
O uso do sono como válvula de escape, no entanto, não foi uma estratégia positiva para todos. Alguns participantes afirmaram ter medo de dormir devido aos intensos pesadelos. Na tentativa de se protegerem da terrível experiência dos pesadelos, esses participantes frequentemente evitam dormir deliberadamente, intensificando ainda mais os problemas de saúde e, consequentemente, seus pensamentos suicidas [4].
Outras funções do sono também foram identificadas entre pessoas que sofrem de ideações suicidas. Como durante a noite tudo é mais silencioso e quieto, esses participantes da investigação afirmaram que se torna mais difícil pensar em outra coisa a não ser em suicídio. Ao mesmo tempo, como todos estão a dormir, maiores são as dificuldades em conseguir suporte social ou fazer alguma atividade de distração, tal como caminhar na praia ou pela cidade. Consequentemente, os pensamentos suicidas se tornam mais intensos. Os investigadores também descobriram que os problemas do sono afetaram drasticamente as habilidades de concentração durante o dia, aumentaram irritabilidade, e intensificaram problemas de relacionamento interpessoal [4].
As relações entre sono e ideações suicidas são bastante complexas e ainda há diversas perguntas sem respostas. Os achados de tais investigações científicas, entretanto, nos indicam claramente que os problemas do sono podem exercer um papel crucial no aumento ou redução da intensidade e frequência de ideações suicidas. Pessoas que se encontram em risco de suicídio não apenas precisam de acompanhamento psicológico para tratar tal risco, mas também necessitam ter preservada a capacidade de dormir bem. Restaurar um sono saudável e também a percepção da qualidade do sono podem ser intervenções relevantes na redução da incidência de ideações suicidas.
*Se você não está se sentindo bem e necessita conversar com alguém, entre em contato agora com o CVV-Centro de Valorização da Vida pelo telefone 188 (ligação gratuita de qualquer parte do Brasil). Procure ajuda na unidade de saúde mais próxima (psicólogo ou psiquiatra).
Referências:
[1] Mental Health Foundation (2011). Sleep matters: The impact of sleep on health and wellbeing. Mental Health Awareness Week 2011 Report: London.
[2] Hemmeter et al. (1998). Microsleep during partial sleep deprivation in depression. Biological Psychiatry, 43, 829-839.
[3] Littlewood, D., Kyle, S. D., Pratt, D., Peters, S., & Gooding, P. (2017). Examining the role of psychological factors in the relationship between sleep problems and suicide. Clinical psychology review, 54, 1-16.
[4] Littlewood, D. L., Gooding, P., Kyle, S. D., Pratt, D., & Peters, S. (2016). Understanding the role of sleep in suicide risk: qualitative interview study. BMJ open, 6(8), e012113.