Os pais têm verdadeiro medo dessa palavra e suas variantes. “Superproteção”, “superprotetores”. Socialmente é mais que um rótulo. Quase um diagnóstico, pode revelar pais ansiosos, medrosos, receosos, preocupados excessivamente. E quem deseja desvelar suas fraquezas? Preocupados e inseguros, todos somos. As coisas começam a complicar quando os pequenos monstros que constituem nossa humanidade são alimentados e, crescendo, passam a ditar as regras de nossa existência. No caso do comportamento parental, ambos sofrem, mas os desdobramentos maiores recaem sobre os filhos. Este tipo de cuidado caracteriza o que nós, psicólogos analistas do comportamento, denominamos “contingência armadilha”, pois sinaliza benefícios em curto prazo, mas num período de tempo mais extenso as consequências atrasadas podem ser desastrosas e aparecer em qualquer idade. Falarei de algumas delas.
Sua Majestade, a prole.
“Quero dar ao meu filho tudo, tudo o que eu puder nesta vida”. Esta frase pode dar dicas sobre alguns fatos do tipo de educação que uma criança recebe. Seria uma grande tolice, obviamente, achar que porque um pai diz isso, seu filho se tornará uma pessoa “x”, “y” ou “z”. Comportamento não é uma medida matemática. Ele é fluido e modifica-se conforme o contexto, o qual pode ser imprevisível e variável. Mas voltando à frase acima, ao citá-la me refiro a um tipo de prática parental que quer evitar que o filho sofra ou se decepcione com alguma postura dos pais, concedendo ao filho tudo (ou quase tudo) o que ele pede. Em geral, crianças assim educadas têm alta probabilidade de apresentar um repertório de comportamentos que pode trazer um número grande de problemas, seja na infância, adolescência ou fase adulta. Comportamentos como:
- Impaciência. É o que tecnicamente denominamos “intolerância ao atraso de reforçadores”, ou como alguns educadores chamam de “baixa tolerância à frustração”. Quando aquilo que o sujeito quer não é fornecido, ou quando as coisas não saem conforme o planejado, ou até mesmo não sai no tempo desejado, há respostas agressivas aos envolvidos, culpando o outro ou achando injusto. Precisamos compreender que este tipo de repertório é construído ao longo da história de vida. Em parte, somos o que aprendemos a ser. E aprendemos de acordo com as consequências de nossas ações a cada instante da vida, mesmo não percebendo. Um exemplo cotidiano, apesar de simples, ilustra bem o que quero dizer: o que é melhor para uma criança de 6 anos? Dar a ela um prato de mingau morninho, quase frio, ou o prato quente e uma colher ensinando-a a ir pelas beiradas, soprando e com paciência esfriando o alimento? Creio que esta segunda opção seja a mais adequada para desenvolver um repertório de comportamentos mais elaborado e também autônomo. Comendo sozinha (com supervisão dos pais na orientação), a criança poderá aprender a lidar com o sentimento de não ter o que quer (o mingau frio) no momento que quer (imediato), pois se assim tentar, seu comportamento será naturalmente punido (a criança irá se queimar). Obviamente que não se trata aqui de deixa-la se virar. Neste caso, abandoná-la não será a solução. Os pais precisam sempre explicar como se faz, dando instruções, modelos de como fazer, avisar das possíveis consequências caso haja comportamentos inadequados, e elogiá-la quando emitir comportamentos na direção adequada, valorizando cada passo desta pequena conquista do filho. Uma implicação social da intolerância é o fato de o filho expressar sempre impaciência com aqueles que tentam ajudar ou mesmo convivem com ele. Um efeito pode o afastamento das pessoas que o cercam, acabando por ficar sozinho ou com pouquíssimos amigos.
- Desinteresse. Uma criança que tem tudo na mão e não precisa fazer nada para ter o que quer pode acabar também desenvolvendo o sentimento de desinteresse em geral. As coisas tornam-se interessantes para nós quando foi preciso haver um custo na resposta emitida para alcançar o alvo desejado. Neste caso, é altamente importante que no decorrer do desenvolvimento da criança haja pequenas dificuldades a serem superadas na direção daquilo que ela deseja obter. Dar à criança algumas tarefas (de acordo com a capacidade dela para realizar) a fim de conseguir o que deseja também é um bom exercício para o desenvolvimento de um repertório de responsabilidade e interesse naquilo que faz. Obviamente que o processo de esforçar-se e também o alcance daquilo ansiado pela criança devem ser valorizados pelos pais, demonstrando à criança que sua vitória foi resultado de seu esforço e empenho. Pausa para um pequeno aviso aos pais “workaholics”: não estou propondo aqui que seu filho seja seu empregado! Vamos com calma, ok? É preciso fornecer tarefas que estejam ao alcance da criança realizar. Caso contrário, quando as atividades são difíceis demais, as tentativas e esforços da criança serão frustrados e ela não mais vai querer tentar, podendo até mesmo se sentir fracassada. Por isso é importante que os pais participem no incentivo, mas claro, não criando expectativas altas demais àquilo que o filho pode realizar. Algumas implicações sociais a longo prazo do desinteresse podem ser: somente achar interessantes as pessoas que lhe dão aquilo que quer, e até mesmo engajar-se em vários relacionamentos mas não levar nenhum deles adiante. Amigos só são legais quando alcançam suas expectativas, caso contrário podem “perder a graça”.
- Não saber. O saber vem sempre do processo de aprendizagem, o qual definitivamente não se restringe ao que se vê na escola ou se lê em livros. Já vi pessoas que falam russo, mas que não sabem pegar um ônibus quando precisam. E quando me refiro a “não saber” estou falando exatamente de comportamentos básicos e necessários para o cotidiano. Quantos adolescentes não sabem andar de ônibus, pois seus pais os levam de carro em todos os lugares. Quantos jovens não sabem passar uma roupa, cozinhar alguma coisa para si, lavar louças ou mesmo se virar numa situação nova e relativamente simples para a maioria das pessoas. De um modo geral, quando a criança, ao longo de seu desenvolvimento, tem tudo em suas mãos sem precisar emitir comportamentos para produzir o que quer, tem-se então a ausência de um repertório comportamental necessário e, portanto, o déficit do “saber fazer”. Ao mesmo tempo, o sujeito não desenvolve uma variabilidade comportamental em direção ao que anseia, não sabendo pesquisar, tentar e “se virar” quando é necessário, carecendo sempre da ajuda de terceiros. Novamente sentimentos de fracasso, menos-valia e baixa autoconfiança podem aparecer como produto dessas contingências.
- A decisão é sempre deles. Desde muito pequena a criança escolhe quais roupas quer vestir, se quer ou não ir à escola, se vai querer almoçar e o que deseja comer no almoço. Ouvi: “desde muito pequenos nossa forma de educar é uma educação democrática. Nós não impomos nada. Eles escolhem tudo e dizem o que querem e como querem”. Esta pode também ser uma prática complicada, principalmente com crianças muito novas, pois estamos falando de uma casa de ambiente imprevisível. Ninguém sabe o que vai acontecer hoje, muito menos amanhã. Este tipo ambiente aumenta a probabilidade de se ter crianças ansiosas e inseguras, pois seus pais não transmitem segurança alguma e capacidade de estruturar um ambiente previsível, rotineiro e seguro. Crianças precisam de contextos previsíveis, pois é neles que aprenderão a construir seus hábitos e até mesmo a lidar com a imprevisibilidade da vida, pois aquilo que sair do esperado será oportunidade para o ensino de que, de um modo geral, a vida anda por caminhos não tão calculáveis assim. Caso contrário, podemos ter uma criança sempre em alerta, ansiosa e com medo já que não terá desenvolvido a segurança que só é possível na rotina.
Tudo pode ser perigoso
Com medo de alguma coisa acontecer, alguns pais evitam que a criança entre em contato com qualquer tipo de risco. Às vezes nem é necessária uma situação “arriscada”. Basta que a criança vá ao banheiro fazer pipi sem avisar aos pais, situação suficiente para frases como “cadê meu filho?”, “fulaninho, onde você está, pelo amor de Deus!”, “eu preciso ser avisada de cada passo seu, entendeu?”. Às vezes, alguns pais não expressam essas verbalizações, mas dão ao filho um celular e passam o tempo todo ligando e falando com ele ou o vigiam em tudo o que está fazendo. Esta própria preocupação também pode se dar até mesmo através da imposição dos gostos e preferências dos pais. Alguns desdobramentos podem ocorrer.
- Medo, inanição, e ansiedade. Algumas crianças podem desenvolver os chamados “transtornos de ansiedade”, apresentando uma série de comportamentos que evidenciam função de esquiva/fuga de possíveis eventos aversivos ou “perigosos em potencial”. Isto também pode ocorrer na adolescência e na idade adulta, chegando num ponto em que o filho não quer sair com os amigos, evita viajar, e desenvolve uma série de crenças abrangendo periculosidade às vezes incompatível com o que realmente acontece. As variações comportamentais são infindáveis, mas sempre evidenciam função de esquiva ou fuga. O repertório dos pais que envolve medo acaba por se configurar como modelo para seus filhos, desenvolvendo assim um verdadeiro “esquivador” diante das contingências da vida, pois tudo, tudo pode ser perigoso e arriscado demais, sendo melhor ficar quietinho no canto e evitar que o pior aconteça. A vida vai passando por entre os dedos e o sentimento de vazio pode ser doloroso. Neste momento da vida dos filhos, a preocupação dos pais passa a ser outra: o que fazer com o filho medroso, calado e que teme qualquer coisa?
- Revolta. Um filho excessivamente controlado por seus pais pode, em algum momento, revoltar-se contra eles. Frases como “esse menino ficou rebelde de uma hora para outra”, são típicas em práticas de superproteção. Às vezes, a motivação para se livrar do jugo dos pais é tão grande que alguns adolescentes ou jovens acabam por engajar-se em comportamentos exagerados e até mesmo perigosos. Acaba por ser uma forma de (1) punir os pais pela superproteção; (2) buscar alívio (“liberdade”) do controle que receberam por anos; (3) buscar contingências que contribuam na formação de sua própria identidade, já que tudo o que fizeram até então está relacionado aos gostos, desejos e vontades de seus pais. É preciso lembrar que as práticas de criação de filhos mudam ao longo de seu desenvolvimento de acordo com a idade e as diferentes contingências às quais eles vão paulatinamente respondendo, tal como o tipo de comida que avaliamos apropriado ou não para a idade do filho. Só lhe damos carne quando seus dentes estão apropriados para mastigar, além do tamanho e tipo de carne. Do mesmo modo, a forma de educar e transmitir aquilo que julgamos importante para o desenvolvimento de um repertório de comportamentos seguro, responsável e produtor de sentimentos de autoestima e autoconfiança, também variará conforme o decorrer dos anos. Alguns pais ainda insistem em tratar um filho de 18 anos como se ele tivesse 6. Precisamos avaliar, no entanto, quais são as melhores formas de se abordar as questões educativas conforme o momento da vida do filho.
Preciso esclarecer algo muito importante aqui. Não proponho (e não acredito) um ponto de vista “pré-determinista” em termos de educação de filhos. A meu ver é, inclusive, infantil uma perspectiva calculista de determinação de ocorrência futura de algo que se vê hoje. Todas as questões abordadas giram em torno de possibilidades, baseadas em experiências clínicas, leituras, publicações e no conhecimento que Análise do Comportamento já construiu sobre os desdobramentos de práticas parentais. Quando falamos em “probabilidade” ou “possibilidades”, necessariamente estão incluídas as chances de haver caminhos completamente diferentes de desenvolvimento.
A superproteção começa com uma análise do comportamento dos pais. Superprotegem por que? O que sentem se assim não o fizerem? Quais pensamentos vêm num momento de deixar o filho um pouco mais solto? Essas perguntas são essenciais para a compreensão do processo, pois pode haver uma discrepância entre o que se crê acontecer e o que realmente acontece. Está com dúvidas? Não hesite em procurar um profissional da Psicologia Analítico-Comportamental. Ele poderá auxiliar nessas questões, as quais aparecem de modos diferentes e altamente específicos em cada um de nós.
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Como citar este texto:
APA (6th Edition):
Zortea, T. C. (2012, Dezembro 28). Notas sobre Superproteção. [Web log message] Recuperado de: http://comportamentoesociedade.com.
ABNT:
ZORTEA, T. C. Notas Sobre Superproteção. Vitória, 2012. Disponível em: <http://comportamentoesociedade.com>. Acesso em: 28 Dez. 2012.
Olá,
muito interessante o texto. Mas acredito que você poderia incluir as referências que foram utilizadas, acho que para quem se interessa pelos temas abordados pode ser bastante proveitoso. Parabéns pela iniciativa, achei a proposta instigadora!
Thiago, seu texto ficou excelente. Sinceramente, se todos os pais seguissem parte do que você sugere, teríamos menos adultos frustrados e infelizes. Parabéns!
Parabéns pela iniciativa Thiago… Apesar de estar no hospital, também faço clínica e nestes momentos percebo o quando nossa formação comportamental foi importante para mim. Adorei sua página… Tenha em mim uma fiél leitora… Se puder pedir, gostaria que publicasse sobre onde encontrar formações na area.
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Você poderia informar as referências?
Oi gente, muito obrigado pelos incentivos!
Sobre referências, não extraí o texto de uma referência específica, mas do conjunto de minhas leituras durante esses anos e da experiência em consultório e sala de aula. No entanto, alguns livros podem ajudar:
“Eduque com Carinho” (Lídia Weber)
“Compreendendo seu filho: Uma análise do comportamento da criança” (Silvia Canaan-Oliveira, Maria Elizabete Coelho das Neves, Francynete Melo e Silva, Adriene Maia Robert).
“Aprendizagem: Comportamento, Linguagem e Cognição” (Anthony Charles Catania)
“Análise do Comportamento: Investigações Históricas, Conceituais e Aplicadas” (Org. Emmanuel Zagury Tourinho e Sergio Vasconcelos de Luna)
“Modificação de Comportamento; O que é e como fazer?” (Garry Martin e Joseph Pear)